quarta-feira, 23 de outubro de 2013

570




Aquilo não era nada além de uma janela de ônibus para a maioria das pessoas que sentavam ali; não pra ele. Sentou-se à direita, no banco da janela, um pouco à frente. O ônibus não estava muito cheio, então podia escolher. Não se tratava de uma escolha propriamente racional, mas intuitiva. Às vezes sentava no fundo, às vezes na frente, às vezes à direita, às vezes à esquerda. Não sabia explicar muito bem porque, tampouco precisava. Abriu a janela (ambas; a de cima também) e pôs-se a olhar bundas.


Ela sentava sempre à frente - pois tinha enjoos quando sentava atrás - e sempre à esquerda, do lado do motorista - pois achava que, caso o ônibus batesse, o motorista tentaria ao máximo se salvar e bateria mais com o lado do trocador. Fazia sentido. Por fim, sentava sempre no banco de fora, o que não era da janela, pra não bagunçar seu cabelo. Pra ela, não era uma janela: era um problema.


Ele olhou de relance quando ela entrou, depois voltou a olhar bundas. Cuspiu pela janela e ajustou o volume do iPod – que tocava Foo Fighters – no máximo. Ao contrário do que suas ações davam a entender, não era um garoto machista, seguro de si ou qualquer outro termo que adjetivaria sujeitos como Clint Eastwood. Pelo contrário. Camuflava um sentimentalismo pueril por baixo de sua postura antiquada e até um pouco rude. Não que fosse sexualmente reprimido ou algo assim, apenas talvez tivesse simplesmente vergonha de lidar com suas emoções de forma franca - embora no fundo enxergasse a sua vida quase que como uma comédia romântica. Mas claro, ela não sabia disso. Nem ela nem nenhuma das bundas que passavam como paisagem pela janela do ônibus. Talvez nem mesmo ele soubesse.


Ela mexia no iPhone enquanto arrumava o cabelo, esforçando-se para olhar pelo reflexo da janela fechada. Tomava cuidado para não estabelecer contato visual com ninguém, principalmente do sexo masculino. A última coisa que queria ouvir antes de chegar em casa era um “gostosa” ou algo do gênero.


O machismo não só reprimia o lado romântico de um garoto introvertido, mas um dos sorrisos mais belos que já sentaram naquele banco de ônibus. Se ele tivesse a oportunidade de vê-lo pelo menos uma vez, certamente não estaria tão concentrado nas bundas transeuntes da janela. Para ele, não era uma janela: era uma ode à mulher.


Bundas, bundas e mais bundas. De todos os tamanhos, formas e modelos. Grandes ou pequenas, felizes ou tristes, acompanhadas de pernas malhadas, pernas morenas ou brancas; até com um pouco de celulite. Quando a menina bonita se levantou, virou o rosto para contemplar a nova bunda que se erguia.


Começava a imaginar alguns detalhes que aquela calça jeans apertada escondia. A menina percebeu e se manteve fiel à sua ideologia de não estabelecer contato visual - ainda mais em uma situação dessas. Puxou o cordão para que o ônibus parasse, mas nesse momento ele freou bruscamente e ela caiu bem do lado do garoto que tentava olhar sua bunda.


Essa é uma daquelas coisas mágicas do destino que você não pode deixar escapar, pensou ele. Já ela tentou manter algum tipo de elegância e fingir que nada havia acontecido, mas uma pancada forte irrompeu o pensamento dos dois. Uma batida grave. No lado do motorista.


Um caos imediato se instalou sob aquela atmosfera contemplativa do ônibus. O trocador retirou o fone de ouvido e, visivelmente transtornado, gritou para que todos ficassem calmos. Um sujeito de aparência normal xingava enquanto uma senhora no banco de trás pedia ajuda porque tinha algum tipo de doença que nem ela mesmo conseguia explicar. A lataria da frente do veículo estava toda amassada e o vidro havia estilhaçado em cima do motorista, que estava ensanguentado e aparentemente inconsciente. Mas ninguém pensava no motorista; naquele momento não se entendia nada e todos queriam apenas sair vivos do ônibus.


- Você tá bem?!


- Acho que tô… - respondeu a menina, pálida e contendo um choro.


- Vamos sair daqui, tá tudo bem. - ela não soube o que dizer então seguiu ele pela porta de trás, aonde a maioria das pessoas estavam saindo. Nunca agiria com tanta naturalidade com um estranho, mas estava abalada e não pensou muito, apenas seguiu o instinto humano de se sentir confortável com pessoas familiares. De todas as pessoas que estavam ali sem dúvida ele era a mais familiar: talvez pelo simples fato de aparentar a mesma idade, ou a mochila e a roupa de quem voltada da aula, assim como ela.

Os dois saltaram em frente à uma lanchonete. Eram duas da tarde e o trânsito estava completamente parado; o sol fritando o asfalto enquanto vozes e barulhos se misturavam naquele pequeno grande tumulto urbano. Era uma caminhonete que havia batido no ônibus, essa sim completamente destruída. Do outro lado da rua um carro cinza havia se chocado num poste, mas nada grave.


Ele estava assustado, mas indiferente. Observava a menina ligar para a mãe e começar a falar da batida como se fosse o onze de Setembro. Não soube porquê, mas gostou disso. Reparou que ela havia deixado cair um cartão enquanto pegava o celular do bolso de trás do jeans apertado que ele ainda não havia conseguido parar de olhar, então o pegou e ficou esperando a ligação acabar para poder devolver. Era um cartão do colégio: seu nome era Julia e estava no segundo ano. Gostou da foto.


Ela não conseguia falar direito, estava com medo e tentava explicar para a mãe o que havia acontecido. Depois desligou o telefone e caminhou apressada para o ponto quando sentiu uma mão cutucar seu ombro.


- Ei, você deixou cair.


- Ah, meu cartão! Muito obrigada! - ela realmente parecia feliz com a situação, guardou o cartão e ficou tímida quando reparou que era o mesmo garoto do ônibus.


- Que isso, tranquilo. Escuta, você tá bem mesmo? Porque eu te vi saindo do ônibus, e sei lá… - ele queria parecer legal, mas estava um pouco nervoso e não sabia bem o que falar, apenas seguia seu instinto masculino.


- Tô sim, pois é, que loucura né? Eu nunca tinha estado numa batida assim antes, tô meio assim… Mas tranquilo. Obrigada pelo cartão, sério!


Ela sorriu; ele se apaixonou instantaneamente. Foi como um tiro no coração, ou o primeiro mergulho de alguém, ou uma injeção de algo bem forte na veia ou qualquer outra coisa do gênero. Tentou pensar rápido em algo para falar, mas ela já havia dado as costas e a ordem natural era que se separassem - ele sabia disso.


Ficaram afastados no ponto, como dois desconhecidos que eram. Ela estava em pé e mexia no iPhone. Ele não sabia se ficava atrás para olhá-la um pouco mais antes que fosse embora, ou se ficava na frente para se manter em uma posição mais visível e talvez despertar algo nela, quem sabe. Quando decidiu ir para a frente, ela entrou num ônibus. O seu chegou logo depois.


Sentou-se à esquerda, no banco da janela, na traseira. O ônibus não estava muito cheio, então podia escolher. Não se tratava de uma escolha propriamente racional, mas intuitiva. Às vezes sentava no fundo, às vezes na frente, às vezes à direita, às vezes à esquerda. Não sabia explicar muito bem porque, tampouco precisava. Abriu a janela (ambas; a de cima também) e pôs-se a olhar bundas.