domingo, 10 de março de 2013

Tem fogo aí? - Capítulo III

Índice:
Capítulo I
Capítulo II




Capítulo III




A verdade é que ninguém consegue viver sem mentiras. Se resolvêssemos desmascarar a realidade, o que sobraria seria tão sujo e oco que não haveria sequer motivo para seguir em frente. Minha vida social, futebol, amor, trabalho, bebida, televisão... nada disso chega perto daquilo que considero a pura expressão do existir. Mas a gente tem que se rodear desse tipo de coisa, se não perde o rumo, não sabe aonde ir. A maioria das pessoas não foi feita para lidar com tanta liberdade. Retire todas as mentiras da vida de alguém se quiser vê-lo perder a cabeça, chegar ao fundo do poço.

Eram vinte para as onze da manhã e eu estava praticamente dormindo no banco de espera do dentista, ouvindo Foo Fighters no iPod, completamente chapado.

É, eu sei. Dentista. Minha vida de solteiro, minha odisseia moderna começou num banco de dentista. Mas vamos lá, gente, todo mundo tem cárie. E eu definitivamente pegaria a minha dentista.

Enfim, depois de vinte minutos já estava quase babando quando senti uma mão cutucar meu ombro e falar alguma coisa. Acordei assustado, com aquela sensação de “o que estou fazendo aqui mesmo?” e retirei o fone de ouvido.

- Que? – eu não reparei, mas falei isso bem alto.

- Artur Moraes. É você? – era um senhor, parecia meu porteiro até. Levantei a cabeça e constatei que estava sendo encarado por cinco desconhecidos: ele, uma senhora, uma criança emburrada, um cara de boné e a Camila. A Camila era só meio desconhecida, porque na verdade apesar de saber seu nome, não sabia mais nada. Ela era a recepcionista.

- Ah, desculpa. Foi mal Camila, eu não dormi muito bem. Posso entrar já? – levantei e coloquei a mochila nas costas, mas todos ainda me encaravam, o que sem dúvida despertou uma certa paranoia momentânea. “Será que eles sabem que eu estou chapado? Merda, a Dra. Ana Paula com certeza vai reparar. Por que não botei colírio antes de sair de casa? Porque a Camila está demorando tanto pra responder? Será que eu falei muito baixo? Merda. Como eu vou sair dessa situação? Por que está tocando James Blunt no meu iPod? Eu não tenho isso, odeio esse cara. Merda, merda. Ok, você já esteve em piores. Foco.”

- Camila?

- Ah, sim. Pode entrar senhor Artur, só estava conferindo seus dados. A Dra. Ana Paula está aguardando o senhor.

Ufa.

Naquele momento percebi que também pegaria a recepcionista. Quantos anos ela devia ter? Vinte? Automaticamente lembrei que não flertava fazia mais de um ano, mas pela minha memória não era tão complicado assim. Decidi começar com ela mesmo.

- Obrigado, Camila. – tentei manter contato visual e tom firme na voz enquanto falei isso. Até fui bem nos primeiros segundos, creio. Mas então pisquei. Lembrete mental: nunca mais piscar. Eu não sei piscar, por quê porras fui piscar naquela hora? É... aquilo foi estranho.

Depois que entrei no consultório, tudo correu de forma normal. A dentista havia engordado bastante desde a última vez e eu estava com a autoestima abalada pela piscada malsucedida, então apenas abri a boca e a deixei fazer o serviço, embora no fundo o que eu queria era precisamente o contrário. Nunca gostei daquele ambiente, não consigo me sentir confortável com alguém enfiando coisas na minha boca. Cortou até o barato.

Saí do dentista meio puto: estava sóbrio e não tinha conseguido nem arrancar um sorriso da Camila na saída com minha piada de duplo sentido. Quer dizer, ela era uma recepcionista. É pra isso que recepcionistas servem, não?

Na maioria das vezes eu gostaria de caminhar pela rua. Sabe; andar, sentir a vida, observar a beleza do cotidiano alheio, das pessoas ordinárias, dos muitos Josés, Joãos, Marias, Carolinas, Lucas... qual o plural de Lucas? Deixa pra lá.

Normalmente eu iria andando pra casa, mas não debaixo daquele Sol. Fui até o sinal para atravessar e pegar o ônibus. Tinha emprestado meu carro pro Marquinhos ir até Visconde de Mauá comprar maconha. Negócios são negócios, sabe como é. Ele era meio doido, mas confiável. Talvez o único confiável: Marquinhos, Marcos Vianna. Estudamos juntos nos dois últimos anos do supletivo. Quer dizer, teoricamente frequentávamos a mesma escola, a mesma sala, mas a vida é tão maluca que não tenho nenhuma lembrança de nós dois no colégio. Matávamos mais da metade das aulas pra ir à praia. Marquinhos era o único que, assim como eu, não fazia idéia do que queria da vida mas tinha certeza que não envolvia ir à escola. Nós não tínhamos medo de assumir essa postura vagabunda perante todos, éramos dois moleques soltos pela vida, mas quando a realidade batia à nossa porta sabíamos lidar com ela. Eu mais, Marquinhos se agarrava em subterfúgios, no que estivesse a seu alcance. Bebida, drogas, mulheres. Sempre foi o mais mulherengo, o mais inconsequente, o mais viciado. Às vezes eu acho que seria como ele se tivesse uma família com tanta grana, mas ao mesmo tempo agradeço por ter nascido meio fodido. Não sei a que ponto aquilo subiria a minha cabeça, talvez até o pobre coitado do Marquinhos tenha passado dos limites há um tempo e só não tínhamos parado para pensar nisso ainda. Ele estava sem carro por causa de uma batida em Búzios, aliás. Não sei nem como conseguiu outra licença, muito menos como ele ainda era a pessoa que eu mais confiava nessa vida. Marquinhos era o maluco com o maior coração que eu já conheci, só não tinha coragem de mostrar isso pra todo mundo. E por algum motivo estranho, eu entendia aquele vagabundo. Hoje em dia estava mais tranquilo, “quase careta, só na cerva e na erva”, como gostava de dizer.

Que se foda também, se quisesse se drogar eu não me importava, só não embarcava nessas ondas mais pesadas dele. Alguém tem que segurar a barra, afinal. Enfim, voltando a realidade... o sinal havia finalmente fechado. É óbvio que algum espertinho tinha que avançar antes que os pedestres começassem a atravessar. Dei dois passos e senti uma mão cutucando meu ombro novamente.

“Puta merda, quem será agora?”

- Artur, desculpa, você esqueceu isso! – era Camila, e estava ofegante. Segurava a minha carteira. Tomei um susto.

- Caralho, pode crer! Nossa Camila, valeu mesmo, não sei nem como te agradecer! A carteira, caramba...

Ela sorriu: - De nada. Olha, eu tenho que voltar lá... mas... hmm.. tem um papelzinho com o meu número aí. A gente podia marcar de sair um dia desses, sei lá. Então, tenho que voltar lá, a gente se fala. Tchau tchau!

E saiu correndo, com a mesma rapidez com que chegou. Vendo por aquele ângulo, era um rabo bem respeitável, digno de uma morena japa como a Camila.

Existem momentos na vida em que você não entende muito bem o que aconteceu, mas também não reclama.

Parecia, afinal, que eu não estava tão enferrujado assim.

E recepcionistas ainda sabiam fazer bem o seu trabalho, graças a deus.

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